El vino da brillantez a las campiñas, exalta los corazones, enciende las pupilas y enseña a los pies la danza. José Ortega y Gasset (1883-1955).

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Chateau Hackmann - safra 1977

Acho que nunca vou esquecer este vinho, que tomei junto com alguns amigos em julho de 1977. O nome era uma alusão festiva a algumas marcas que se destacavam no mercado brasileiro da época. Elaborado com uvas cuidadosamente selecionadas de um parreiral escondido em uma encosta sombria do município de Taquara (RS), era o vinho mais aguardado daquela safra. Se não conhecesse profundamente o responsável por esta jóia rara, diria tratar-se de um vinho robustecido em cantina. Não era , nunca foi esta a intenção de Ary Ganso, que no fundo queria apenas fazer um vinho para o consumo da casa e para comemorar com os amigos, como fazem quase todas as famílias de viticultores. Técnicas pouco convencionais foram utilizadas em sua vinificação, o açúcar, insuficiente, foi abundantemente corrigido, a fermentação tumultuosa aconteceu de forma transbordantemente descontrolada, e muito vinho se perdeu nos primeiros dias. Em abril, tudo parecia estar tranqüilo e o vinho repousava em três barricas de carvalho, no porão da casa de madeira. Mesmo assim, parecia faltar alguma coisa, acharam que o vinho podia sair fraquinho ou meio sem corpo, não sei quem foi que sugeriu, mas o teor alcoólico foi subitamente modificado.

O segundo semestre da faculdade estava para começar e combinamos um churrasco em minha casa. Já tinha virado hábito marcar um assado em todo reinício de aulas. Um garrafão de vinho tinto, um pernil de ovelha e farinha de mandioca moída grossa, este era invariavelmente nosso cardápio - às vezes alguém inventava de trazer pão. Verde, somente a erva do chimarrão, que tomávamos enquanto a carne dourava no fogo. Comecei cedo a função, espeto no alto, braseiro controlado e a gordura pingando lentamente. Aos poucos, todos foram chegando. Éramos quatro ou cinco talvez, afinal o pernil de um capão adulto não dá para muita gente. Finalmente Ganso chegou trazendo o garrafão do Chateau Hackmann.

Era para ser um passeio. Fazia frio naquele dia, batia uma chuva fininha, tudo parecia perfeito e todos nós estávamos animados para derrubar aquele vinho tão anunciado. Não foi o que aconteceu. Boris, o cão boxer de minha irmã, que sempre nos acompanhava serviu de testemunha das tristes cenas que aconteceram em seqüência. Garrafão aberto, vinho nos copos, erguemos um brinde ao nosso reencontro. Logo surgiram os primeiros comentários: notas vulpinas delicadas, sabor foxado e ligeiro desequilíbrio e, alguns críticos mais acerbos, partiram logo para o gosto de pelo de cachorro molhado, com persistência desagradável. Não foi fácil, não foi nada fácil, o vinho logo revelou toda sua potência alcoólica. Tinham graduação muito baixa, os vinhos de mesa daquele tempo e um garrafão para nossa turma era brincadeira. Aquele ali não, resistia. Passado duas horas, mais de metade do líquido permanecia incólume no recipiente.

Tratei de fugir. Convidei meu amigo Juarez para remar no Guaíba, pensei que um pouco de exercício, o vento frio, o ar puro nos faria bem. Logo estávamos navegando nas águas revoltas do grande rio. Era um caiaque antigo de madeira muito pesada. Remamos um pouco até atingir o ancoradouro de um clube náutico que ficava ali perto. Naufragamos entre movimentos descompassados e recordações daquele inebriante clarete. A temperatura da água era de congelar, mas nem isto foi suficiente para nos recuperar de seus efeitos devastadores. Não havia socorro, ninguém se aventuraria entrar no rio em um dia como aquele. Com muito esforço, conseguimos levar o barco semi-submerso até uma ilha e depois retornamos a casa. Fomos recebidos com muito café preto. O vinho foi parar na água barrenta e ali ficou indissolúvel, uma estranha força parecia uni-lo. Lentamente foi desaparecendo no movimento das ondas, mas permaneceu assim na minha lembrança.

4 comentários:

Emma disse...

Genial... não consigo parar de rir imaginando a cena. Agora entendo porque o Juarez se ressente tanto quando não é convidado para certos assados de ovelha. São as lembranças, as lembranças...

Bernadete Beserra disse...

Verdade, Emma, ótimo! E uma experiência certamente indispensável para o que Walter se tornaria depois: entre outras coisas, um ótimo narrador.

Anônimo disse...

GBela recordação que me fez dar boas risadas. Aquilo não era vinho. Era um antídoto para nunca mais tomar vimho. Ainda bem que minha memória é fraca. Parabéns pelo texto, "Pena Vibrante".

Anônimo disse...

intiresno muito, obrigado